Pesquisa clínica: fundamentos aspectos éticos e perspectivas

Jaderson S. Lima e colegas -Jaderson S. Lima 1,4, Denise de La Reza 2,4, Sérgio Teixeira 4, Cláudia Costa 3,4
Universidade Federal do Rio de Janeiro, Universidade do Estado do Rio de Janeiro, Sanofi-Synthelabo Ltda (Brasil)

Palavras-chave: Epidemiologia, Medicina baseada em evidências, Pesquisa clínica1 Professor Adjunto – Departamento de Clínica Médica – Faculdade de Medicina da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ)
2 Médica do Serviço de Alergologia e Imunologia – Hospital Universitário Clementino Fraga Filho (UFRJ)
3 Professor assistente de pneumologia e tisiologia - Faculdade de Ciências Médicas da Universidade do Estado do Rio de Janeiro
4 Diretoria Médico-Científica – Sanofi~Synthelabo Ltda (Brasil)

1 - Definições e breve histórico

A pretensão de iniciar este artigo com a tentativa de definição de “pesquisa clínica” decorre tanto da forma variada como o termo é utilizado em nosso meio como também pela ausência de uma definição reguladora, como há em outros países, embora a Resolução CNS 196/96 conceitue o que se denomina “pesquisa envolvendo seres humanos” 1.

A ambigüidade com que o termo é usado pode ser depreendida pela definição de “ensaio clínico”, feita pela agência reguladora dos Estados Unidos, o Food and Drug Administration (FDA), como sinônimo de “pesquisa clínica” 2. Os principais e mais completos textos sobre o tema procuram diferenciar os dois termos através de definições mais rigorosas 3,4,5,6. No sentido etimológico a palavra ensaio significa “tentativa” ou “experiência”. Uma experiência ou um experimento corresponde a uma ou mais observações feitas por um cientista sob condições por ele controladas. O ensaio clínico, portanto, pode ser definido como uma experiência que se destina a testar um tratamento médico em seres humanos. De modo mais abrangente, é uma pesquisa conduzida em pacientes, ou em voluntários sadios, usualmente destinada a avaliar um novo tratamento. O ensaio clínico destina-se a responder a um questionamento científico com vistas a encontrar melhores opções terapêuticas para tratar os pacientes7.

Os ensaios clínicos e os métodos estatísticos neles empregados enquadram-se perfeitamente em todo o espectro do que se pode chamar de pesquisa clínica. Todavia, nem toda pesquisa clínica enquadra-se na definição do que seja um ensaio clínico. Um estudo transversal ou um estudo de coorte, em que não há intervenção do pesquisador, são exemplos de pesquisa clínica que não podem ser definidos como ensaios clínicos, pois não envolvem uma experiência.

Este artigo tem como objetivo principal abordar alguns aspectos inerentes aos ensaios clínicos com medicamentos.

Os princípios que obrigatoriamente fundamentam o ensaio clínico são aqueles que determinam e disciplinam a pesquisa científica e devem servir aos mesmos propósitos, além de contemplar o mesmo rigor metodológico. A finalidade do exercício intelectual da pesquisa se expressa na busca por novos conhecimentos8. Observações clínicas úteis são obtidas – e sempre o foram – com base na experiência clínica crível, porém antes do advento da experimentação clínica, a referência clínica era o paciente do ponto de vista individual. Depreende-se daí o uso clássico do termo “caso clínico” como entidade unificada do raciocínio médico. A generalização do conhecimento do indivíduo para a população era informal, variava conceitualmente de uma pessoa para a outra e, obviamente, contemplava as falhas inerentes à formulação de juízo de valor baseado na percepção humana.

Muitos avanços da Medicina no século XX foram baseados no progresso eventual de idéias existentes.

Entretanto, o método científico aplicado ao planejamento dos estudos clínicos permitiu que os avanços ocorressem de modo muito mais rápido e confiável, propiciando os fundamentos sob os quais a inferência clínica é obtida com benefício singular se somado à observação clínica cuidadosa e competente6.

O método científico aplicado ao ensaio clínico necessita de um equilíbrio entre a aplicação da inferência indutiva (observar com base na teoria) e a inferência dedutiva (teorizar com base na observação). A prevalência da inferência dedutiva (preocupações com a teoria) levou a Medicina a gerar inúmeras interpretações e evidências equivocadas e, dentre as mais recentes, podem ser citadas as doses elevadas com que os betabloqueadores e os inibidores da enzima conversora da angiotensina começaram a ser usados na terapêutica da hipertensão arterial9, sem menção ao fracasso de muitos antiarrítmicos, como demonstrado mais recentemente10. O método inferencial tem como paradigma o uso dos aspectos formais do estudo representados pela estatística. Sendo assim, a estatística deve estar presente desde o planejamento até a análise final das experiências científicas. A estatística é indispensável à pesquisa biológica, forjada no modelo probabilístico no qual as observações são feitas, e se presta aos seguintes propósitos: generalizar as informações de uma amostra populacional de poucos para muitos indivíduos, combinar o conhecimento empírico com aquele baseado na teoria e o gerado pela evidência ou comparação experimental6.

Para os leitores interessados na história e na metodologia da pesquisa do ensaio clínico, recomendam-se diversos textos que abordam amplamente o assunto3,4,6,7. O primeiro ensaio clínico publicado e que resultou em flagrante benefício aos sujeitos da pesquisa (ou pacientes) foi realizado em 1747 por Lind, um médico da Marinha Real Britânica que, separando em grupos indivíduos acometidos por escorbuto, tratou-os com sidra, óleo de vitríolo (ácido sulfúrico), vinagre, água marinha, laranjas, limões e mostarda. Os indivíduos dos grupos em que foram usadas as frutas cítricas, recuperaram-se rapidamente11. É digno de nota lembrar que, mesmo diante de flagrante evidência, o próprio Lind recomendava o “ar fresco” como primeira opção de tratamento do escorbuto, seguido da ingestão de frutas e vegetais. Pior ainda, a Marinha Britânica demorou 50 anos para incorporar o suco de limão aos suprimentos fornecidos aos marinheiros4.

Infelizmente, deve-se ressaltar que, até os dias de hoje, as evidências científicas – por mais contundentes que sejam – demoram muito para que sejam implementadas na prática médica diária. Isto decorreu, ou é conseqüência, da herança autoritária do sistema médico vigente, que baseia suas decisões na “opinião” de especialistas, de estudos realizados em modelos experimentais inadequados, da resistência de alguns profissionais em mudar seus hábitos, da ausência de infraestrutura e da caducidade pedagógica, antagônicos ao pleno desenvolvimento da pesquisa clínica.

Tudo isto é compreensível face às características da evolução do pensamento médico nos últimos dois séculos, que partiu de um misto de crendice com autoritarismo, para uma fase influenciada pelo niilismo - “não faça nada porque os médicos fazem mais o mal do que o bem” (Oliver Holmes, séc. XIX) -, passando por um período de “explosão terapêutica” do pós-guerra (retorno ao “faça o que puder...”) para, no final da década de 80, incorporar os conceitos da “medicina baseada em evidências”12.

Hoje, as evidências mais significativas sobre os benefícios de uma terapia medicamentosa se originam nos ensaios clínicos controlados e as conseqüências em não admiti-los como o método mais seguro, claro e objetivo para se avaliar a relação benefício/risco de um tratamento, podem ser sérias e muito custosas. Exemplos? A descrição dos efeitos da Digitalis Purpurea por William Withering foi feita há mais de 200 anos (1785) e, desde então, houve inúmeras publicações a respeito das propriedades farmacológicas dos glicosídeos cardíacos e seus efeitos inotrópicos. No entanto, só recentemente foi possível verificar os efeitos clínicos da digoxina sobre a mortalidade (relação benefício/risco), através de um estudo clínico controlado13. Outros estudos congêneres se sucederam, limitando o espectro da indicação do uso dos digitálicos na insuficiência cardíaca a poucas circunstâncias clínicas14. Por outro lado, medicamentos antiarrítmicos comumente usados na clínica tiveram seus usos clínicos questionados ao ser demonstrado no “Cardiac Arrhytmia Suppression Trial” que, em pacientes com infarto do miocárdio, estes medicamentos possuíam relação benefício/risco impeditiva, decorrente do aumento da mortalidade, quando comparado aos pacientes que fizeram uso de placebo10.
 

2 - Segurança como paradigma do desenvolvimento de novos medicamentos

Embora possa não parecer óbvio para alguns, a segurança de um medicamento corresponde ao cerne do seu processo de desenvolvimento. A ninguém interessa – nem às autoridades sanitárias, nem à indústria farmacêutica e muito menos aos pacientes -, um medicamento que imponha mais riscos à saúde em detrimento de eventuais benefícios (lembramos que esta avaliação é feita no contexto de uma doença específica e das alternativas terapêuticas)15. Nos centros de decisão de grupos farmacêuticos, que investem no desenvolvimento de novos fármacos, existe o desejo intrínseco de se descobrir “um sucesso terapêutico”. A isto denomina-se uma nova entidade química que seja patenteável e, para isto, deve ser segura, eficaz e/ ou melhore a qualidade de vida dos pacientes.

Desde o advento da publicação do “Copeland Bill Act”, que deu origem ao FDA, nos Estados Unidos, processo esse iniciado pela ocorrência de reações adversas graves a um medicamento, até o desastre provocado pelo uso da talidomida, verifica-se claramente um aumento no número de estudos – pré-clínicos e clínicos – para se obter o registro de um medicamento novo. Esta evolução pode ser facilmente observada pelos números representativos deste processo. Na década de 1950 o custo médio da pesquisa e desenvolvimento (P&D) de um novo fármaco era de USD 1.500.000 (hum milhão e meio de dólares). Hoje, as cifras atingem a média de USD 800.000.000 (oitocentos milhões de dólares). E se naquela década o dossiê de registro de um medicamento continha, em média, 60 páginas, já nos anos 80 os dossiês registravam em média 100.000 páginas15 e hoje atingem algo em torno de 300.000 páginas. Isto é o resultado de 12 a 15 anos de P&D durante os quais os estudos relativos à segurança se tornaram mais e mais necessários e exigidos.

Estudo farmacoeconômico feito pela Universidade de Columbia (EUA) mostra que cada 11.000 dólares gastos em cuidados gerais de saúde resultam, em média, em um ganho de 1 ano de vida. Entretanto, com 1340 dólares gastos em P&D, o retorno é o mesmo. O mesmo estudo demonstra que cada dólar investido em P&D está associado a 3,65 dólares de redução com gastos hospitalares16. Os benefícios para a sociedade são inestimáveis. Por exemplo: a vacinação praticamente aboliu a difteria, a coqueluche, o sarampo e a poliomielite; houve significativa redução da taxa de mortalidade por influenza e pneumonia (85% nos EUA) no século passado; a mortalidade cardiovascular foi reduzida em 50% desde a década de 50; os óbitos por enfizema e úlcera péptica foram reduzidos em 57% e 72%, respectivamente; além da drástica redução da morbimortalidade por câncer nos últimos anos, sobretudo, pelo diagnóstico precoce e pela utilização de novas terapias17.

Com todos os esforços científicos e recursos empregados, não há outro caminho senão a obtenção de medicamentos mais seguros, e este caminho começa no processo de pesquisa química biológica (fase que pode durar até 6 anos). O desenvolvimento de um novo alvo ou conceito terapêutico e modelos experimentais em células – ou animais – para uma doença requer um rastreamento experimental no qual, de cada 10.000 novos compostos, 250 chegam aos testes experimentais pré-clínicos e apenas 5 entram nas fases clínicas (testes em humanos). Ao final, estima-se que apenas uma molécula chegue ao mercado18.

Presume-se assim que chegar ao “sucesso terapêutico” é uma façanha arriscada, custosa, demorada e sem paralelos. A parte referente à pesquisa pré-clínica impõe, além dos estudos de farmacologia (farmacocinética e farmacodinâmica), uma extensa gama de estudos toxicológicos (toxicidade aguda, subaguda e crônica, efeitos sobre a reprodução, carcinogênese e teratogênese)11.

Um dossiê relativo a um produto denominado pelo FDA de IND (Investigational New Drug) deve conter todos os elementos de análise para que o medicamento esteja apto a ser testado em humanos. Além das informações de eficácia, é necessário que contenha a descrição completa dos testes de toxicidade (Quadro 1) que variam em dose, duração via de administração do medicamento, dependendo da maneira ou indicação com que se pretende usá-lo na clínica.

A empresa patrocinadora (detentora da patente de um medicamento) só pode iniciar os estudos em humanos quando a autoridade sanitária (FDA nos Estados Unidos, a EMEA na Europa e a ANVISA no Brasil) se satisfaz com a análise destes documentos, que demonstram não haver dados que impliquem em risco inaceitável para os pacientes. Normalmente, isto toma muitos anos adicionais e o processo de avaliação é mantido, em sua fase clínica, utilizando uma metodologia rigorosa, de acordo com as normas reguladoras em vigor que, na maioria dos países, têm por base as diretrizes estabelecidas pela Conferência Internacional de Harmonização (ICH) para a “Boa Prática Clínica “ (ICH-GCP)19. Estas, têm como fundamento o Código de Nuremberg de 1948. Neste último, o paradigma é: “toda pesquisa em seres humanos deve ter como principal preocupação bem estar do sujeito da pesquisa”. Nas diretrizes da ICH-GCP, encontram-se claramente definidas as responsabilidades do patrocinador (público ou privado), do investigador e dos comitês de ética, além de explicitar o conteúdo mínimo que deve estar contido no protocolo do estudo e em suas ementas, na monografia do produto e todos os documentos essenciais para a condução de um estudo. O pleno conhecimento destas normas, diretrizes e desses regulamentos deve preceder o início de qualquer ensaio clínico.
 

3 - As fases do ensaio clínico

Como afirmado anteriormente, a definição de pesquisa clínica não está livre de ambigüidades e, muito embora a que é amplamente utilizada seja de difícil generalização6, o ensaio clínico pode ser definido e estadiado em fases. Por Fase I entende(m)-se o(s) primeiro(s) estudo(s) em seres humanos (estudos iniciais de segurança), compreendendo, principalmente, a administração do medicamento em poucos voluntários sadios (de 20 a 80, p.ex.) que em geral são pagos para participar do estudo. Nestes estudos, os voluntários são monitorados por 24 horas, já que se busca avaliar os efeitos das primeiras doses (estabelecer a faixa de dose tolerada, de única a múltiplas doses, ou seja, dose segura e posologia). Estes estudos podem eventualmente ser conduzidos em pacientes gravemente enfermos, em circunstâncias nas quais a toxicidade elevada torna-se aceitável (pacientes com câncer, p.ex.) ou mesmo em pacientes com doenças como epilepsia quando se quer averiguar aspectos farmacocinéticos (interação medicamentosa com enzimas microssomais, por exemplo). Nestes últimos casos, a eficácia também pode ser avaliada18.

As doses estabelecidas nos estudos Fase I são utilizadas para orientar justificativas dos protocolos dos estudos de Fase II nos quais, não só a segurança,

Quadro 1

Teste de Segurança Pré-Clínica em Animais
 
Segurança
Modelo de Teste
Duração da dose
Toxicidade aguda/imediata
Rato, camundongo e cão 
1-14 dias
Toxicidade de curto-prazo
Rato, camundongo, cão e macaco
30-90 dias
Toxicidade de longo-prazo
Rato, camundongo, cão e macaco
6-12 meses
Carcinogenicidade
(tempo de vida datoxicidade)
__________________________

Carcinogenicidade
(mecanismo de ação)

Rato e camundongo
__________________________________
Modelos de cultura de células/in vitro
24 meses
______________
Dias
Teratologia/anomalias congênitas
Camundongo, rato e coelho
Meses
duas gerações
Fertilidade
Teste de mobilidade do esperma in vitro 
Dias
Fertilidade e comportamento reprodutivo
Rato e coelho
Dias-meses
Perfil fisiológico/farmacológico
Rato, camundongo e cão
Dias
Absorção, distribuição, metabolismo, eliminação (ADME)
Rato, camundongo e cão ou macaco
Dias-meses
Reproduzido com autorização do autor19

mas também a eficácia é estudada. Estes estudos podem envolver 300 pacientes (ou mais) , sendo subdivididos em IIa e IIb. O estudo IIa caracteriza-se por ser realizado em população selecionada de pacientes, e tem por objetivo avaliar vários aspectos de segurança e eficácia (curva dose-resposta, tipo de paciente, freqüência da dose, etc.) Os estudos IIb são estudos que avaliam a eficácia e a segurança do medicamento em teste nos pacientes com a doença a ser tratada, diagnosticada ou prevenida. Em geral, correspondem a uma demonstração de eficácia sob condições experimentais mais rigorosas, envolvendo um grupo controle comparativo. Mesmo nesta fase, outros dados experimentais de estudos em animais podem ser agregados e também são levados em consideração, com vistas a modificações no curso dos estudos clínicos5.

Os estudos de Fase III, também denominados de estudos de eficácia comparativa, são aqueles nos quais o medicamento em estudo é administrado a uma população de pacientes muito próxima daquela a que se destina após a sua comercialização. Aqui, é usada esta expressão (muito próxima) certamente porque estes estudos são controlados, impõem critérios de inclusão e exclusão que muitas vezes não correspondem à realidade da “prática médica”, usam grupos-controle que têm placebo como agente comparativo e podem impor que os pacientes façam uso da terapia-padrão. Como geralmente estes estudos são multicêntricos internacionais, a terapia-padrão refere-se ao que há de mais atual, com base nas diretrizes estabelecidas pelas sociedades médicas internacionais, e isto pode alterar os parâmetros comparativos da relação benefício/risco ao se tentar extrapolar os resultados obtidos no estudo para a prática clínica diária. Por outro lado, por serem estudos multicêntricos internacionais, comportam um coorte de pacientes o mais heterogêneo possível, o que torna seus resultados e suas conclusões mais aceitáveis e aplicáveis à prática diária do que os estudos realizados em populações restritas. A população de pacientes incluída nestes estudos chega, em alguns
casos, a dez ou vinte mil indivíduos5,6,18.

Todos os resultados dos estudos pré-clínicos e clínicos até a Fase III farão parte de um dossiê que é enviado às agências reguladoras, para a solicitação de aprovação para a comercialização do medicamento.

Depois de comercializado, o medicamento continua a ser estudado. Estes estudos são chamados de Fase IV, e têm por objetivo obter mais informações sobre os seus efeitos, suas interações medicamentosas, e, sobretudo, ampliar as avaliações de segurança realizadas por intermédio dos estudos farmacoepidemiológicos5,18.
 

4 - Aspectos regulamentadores e éticos

Como escrito anteriormente, a pesquisa clínica é regulada, na maioria dos países, sob a égide do Código de Nuremberg (1948), pela Declaração de Helsinki, e pelos princípios que norteiam o que se denominam diretrizes da “Boa Prática Clínica” (ICH-GCP)19. O fundamento desta regulamentação baseia-se no bem estar dos indivíduos voluntários a participar de uma pesquisa18. Todos os que participam direta ou indiretamente na execução de um ensaio clínico, sobretudo as agências reguladoras, devem priorizar a segurança dos pacientes, com base na acurácia e qualidade dos dados, bem como na objetividade, integridade e confiabilidade dos mesmos 18,20.

Embora seja um assunto complexo para ser abordado, mesmo que em muitas linhas, uma das principais dificuldades de se contemplar aspectos éticos em pesquisa clínica resulta de uma dicotomia encontrada na distinção artificial do que se denomina pesquisa e prática em Medicina21. Outro problema reside no mito e na ignorância que envolvem o termo experimento. Quando um médico está seguro sobre o desfecho de um procedimento ou tratamento refere-se à prática, mas, ao contrário, diante da incerteza, considera, então, uma pesquisa ou experiência6.

A discussão sobre o que torna ética uma pesquisa ou um ensaio clínico permeia muitos textos especializados no tema, os quais recomenda-se a leitura 6,20,21,22,23. A maioria concorda que um ensaio clínico metodologicamente bem desenhado é ético per se, pois pode responder a perguntas que tenham grande repercussão para a saúde humana, sem prejuízo do sujeito da pesquisa, individualmente. Nivelado desta forma, o ensaio clínico é uma experiência verdadeira (sob o ponto de vista conceitual) e deve abrigar importantes características do método científico quais sejam: quantificação e reprodutibilidade; registro escrito, com referências e explicitação da hipótese ou teoria a ser testada; desenho do estudo que implique em controle de fatores externos (controle de vieses); submissão dos resultados ao reconhecimento
externo6,20.

Deve-se deduzir, ainda, que a ética em pesquisa clínica compreende três princípios que fundamentam a sua execução: (1) respeito pelas pessoas (obtenção de um termo de consentimento livre e esclarecido; confidencialidade; proteção daqueles com incapacidade de tomar decisões); (2) beneficiência (não causar dano, maximizar benefícios reduzindo os riscos); (3) justiça distributiva (desenho adequado do estudo, pesquisadores e equipe qualificados, balanço favorável risco/benefício, seleção eqüitativa de pacientes). Os protocolos devem ser aprovados por Comitês de Ética Institucionais, além de seguir outros procedimentos regulamentadores nacionais e internacionais15. Estudos multicêntricos devem ter Comitês de Avaliação de Segurança independentes para monitorar os dados do estudo e decidir, com autonomia, a continuidade ou não do mesmo.

Aliás, em uma revisão recente sobre os processos de garantia da segurança dos participantes em ensaios clínicos, Califf et al (2003)24 discutem uma série de possibilidades e limitações dos comitês de ética, patrocinadores, comitês independentes de avaliação dos dados de segurança, instituições de pesquisa, autoridades reguladoras e pesquisadores, e propõem recomendações extremamente relevantes. Se colocadas em prática, essas recomendações permitiriam que se chegassem a condições muito mais precisas sobre processos e métodos de garantia da segurança de pacientes incluídos em pesquisa clínica, entre as quais citam-se o planejamento adequado da monitoria, a revisão de dados centralizada para estudos multicêntricos, e a inspeção local para estudos realizados em um único centro.

Quanto à observância de eventuais aspectos legais, há uma crença popular, ainda muito difundida, de que as pessoas seriam tratadas como “cobaias”. Além de falsa, esta afirmativa é um desserviço à ciência e, portanto, ao bem estar dos indivíduos, pois é no ensaio clínico formal que se registra uma baixa incidência de negligência médica, os pacientes têm acesso a tratamento mais eficaz e são acompanhados como em nenhuma outra situação15.

Há muito questionamento ético acerca do uso de placebo nos ensaios clínicos, porque se há algo de que o paciente não necessita, isto é o placebo. Entretanto, o efeito placebo é bem reconhecido na Medicina25 e, até hoje, não há nenhum método científico melhor para se avaliar o grupo comparativo que não seja usando-se um grupocontrole com placebo, mesmo quando há tratamento-padrão26.

Em uma revisão completa sobre este tema, Brody (1997)27 aponta claramente em quais situações o placebo seria eticamente questionável. Uma delas é quando existe tratamento-padrão para a respectiva indicação. Quando as evidências que respaldam este tratamento são sólidas o suficiente para não impor riscos aos pacientes, constam na literatura especializada e são reconhecidas pelos pares, o medicamento em teste deve ser comparado a este tratamento. Neste caso, o uso do placebo poder se sobrepor à terapia-padrão.

Muitos tratamentos bem estabelecidos tiveram seu uso proscrito com base em resultados obtidos através de estudos clínicos bem desenhados e controlados com placebo. Em alguns, o estudo foi interrompido por conta de uma melhor relação benefício/risco nos pacientes que fizeram uso do placebo, como no “Cardiac Arrhytmia Supressor Trial”10 e no mais recente e surpreendente estudo que avaliou os riscos e benefícios da reposição hormonal (estrogênio + progesterona) em mulheres saudáveis pós-menopausa28,29. Outros exemplos são citados por Brody (1997)27. Até mesmo em cirurgia, onde o uso de placebo pode ser considerado inconcebível, há alguns argumentos científicos e eticamente válidos conforme explicitado em revisão recente sobre o tema publicado por Horn e Miller (2002)30.
 

5 - Os estudos clínicos multicêntricos

A pesquisa clínica avança cada vez mais no sentido de necessitar da cooperação entre inúmeros centros de vários países. Com a participação dos países do Leste Europeu, houve um aumento exponencial do número de pacientes incluídos nos estudos multicêntricos internacionais. A América Latina caminha também aceleradamente para a sua inclusão definitiva neste contexto. Além do Brasil, a Argentina, o México e o Chile têm contribuído com esta evolução. Se as previsões se mantiverem, os centros participantes em pesquisa clínica localizados fora dos Estados Unidos e da Europa Oriental, crescerão de 15%, em 1998, para 30% até o ano de 2008 31. São inequívocos os benefícios resultantes da inclusão do Brasil neste processo:

• até há pouco tempo atrás, os medicamentos eram registrados com dossiês resultantes de estudos feitos em outros países, ou seja, a população brasileira fazia e faz uso de medicamentos cuja segurança e eficácia foram avaliadas em amostras populacionais distintas dela. Não é por acaso que o FDA exige, para registrar um medicamento, que pelo menos 30% da amostra populacional do estudo seja composta de americanos. No Japão, todas as fases dos estudos devem ser realizadas in loco para que o medicamento seja registrado;

• a participação em estudos internacionais permite o intercâmbio de informações entre centros de excelência, criando um ambiente rico e crítico o suficiente para desenvolver e aprimorar os métodos de ensino e pesquisa, bem como a aplicação direta e imediata desse conhecimento no cuidado com os pacientes. Como foi dito anteriormente, só se deve lamentar o fato de a aplicação desse conhecimento não ser tão rápida e eficiente;

• os estudos multicêntricos – nacionais e, principalmente, internacionais – são elaborados contemplando-se o que há de mais atual sobre a patologia em questão, e incorporam os métodos e tecnologias exigidas pelo que costuma ser denominado de “estado da arte” (tradução do inglês “state-of-the-art”). Estas exigências são feitas pelas agências reguladoras (autoridades sanitárias), comitês de ética – com maior diversidade étnica e cultural – além dos centros de excelência e comitês independentes de análise de segurança ou de adjudicação de eventos. Assim sendo, os protocolos aprovados e a execução do estudo se refletem em um controle mais eficiente, exigente e diversificado. Aliás, na mesma revisão de Califf et al.(2003)24 há indicativos das sensíveis diferenças entre os estudos feitos em centro único e os multicêntricos. Segundo os autores, há maior vulnerabilidade para a ocorrência de problemas de segurança quando o ensaio clínico é realizado em um único centro;

• ao se tornarem mais competitivos, os Centros Brasileiros e Latino-americanos incorporam melhorias significativas no que, definitivamente, pode ser oferecido aos pacientes em termos assistenciais. É reconhecido que pacientes assistidos como voluntários de pesquisa clínica podem apresentar as menores taxas de morbidade e mortalidade pelas razões expostas acima já que, nos estudos clínicos controlados surgem as novas diretrizes para tratamento de diversas doenças32.

Se por um lado os estudos multicêntricos internacionais exibem um contexto favorável, o que ultimamente vem sendo denominado como “globalização dos ensaios clínicos”, traz também muitos temas à reflexão33,34,35,36. Não há dúvida de que um deles é a diversidade ou diferenças na avaliação reguladora e ética dos estudos, quer seja por naturais diferenças culturais ou pelas sensíveis diferenças no treinamento e formação das pessoas que têm assento nos diversos comitês ou órgãos reguladores.

Alguns autores alertam para as marcantes diferenças encontradas na estrutura revisional, requisitos para revisão ética jurisdicional ou procedimentos para a submissão e para a avaliação de projetos ou protocolos de pesquisa, já que parecem não coincidir, mesmo quando se consideram países da União Européia36. Para harmonizar e instrumentalizar melhor estes comitês, várias comissões internacionais foram criadas como fórum de discussão (OMS/TDT; OHRP, FERCAP na Ásia, FLACEIS na América Latina)36.

Embora recentes, as normas e diretrizes regulamentadoras da pesquisa clínica no Brasil propiciaram um grande avanço para o país. O reflexo disso é percebido pelo incremento ou até mesmo inclusão definitiva do país nas atividades de pesquisa clínica que se verifica a partir de 1996, após a publicação da Resolução CNS 196/96 (Figura 1). Não diferente de outros países e, como todo processo evolutivo, o regulamento brasileiro tende a estabelecer e adotar procedimentos consoantes com as demais diretrizes.

No anseio de que a harmonização ética e reguladora caminhe para o consenso rápido e eficaz, transcreve-se o explicitado no artigo de Karbwang et al.(2002), quando afirmam: “nenhuma autoridade, agência ou país, deve tomar para si o encargo ou responsabilidade de criar as melhores condutas éticas revisoras em um ambiente de pesquisa clínica globalizada. Não é factível. Não seria ético. Simplesmente não funcionaria”36.

Figura 1- pesquisas clínicas autorizadas pela Anvisa de 1995 a dezembro de 2002
Fonte: Anvisa em www.anvisa.gov.br

6 - O Futuro da Pesquisa Clínica

Com o avanço da pesquisa, houve um incremento substancial no conhecimento da genômica e proteômica. As companhias farmacêuticas estudaram, em 1996, 498 proteínas e estas serão possíveis alvos para o desenvolvimento de novos medicamentos. Por outro lado, sabe-se que a espécie humana contém entre 30 e 40 mil genes, que transcrevem de 60 a 100 mil proteínas. Destas proteínas, considera-se que aproximadamente 3 a 10 mil poderão ser alvo de estudos futuros37.

Com o avanço da pesquisa genômica e proteônica, e com o ganho de conhecimento científico nesta área, o processo de descoberta de uma nova molécula irá se tornar mais eficiente. Além disso, os medicamentos poderão ser “desenhados” especialmente para um determinado grupo de pacientes com marcadores genéticos de risco para diversas doenças.

Com o desenvolvimento de mais medicamentos direcionados a grupos genéticos determinados, haverá um aumento do número de estudos clínicos. Os centros com capacidade para realizá-los com qualidade e rapidez certamente serão favorecidos por este processo.
 

7 - Conclusão

A função primordial da pesquisa clínica é a de contribuir para o conhecimento geral e, se apropriadamente desenhada e executada, é a maneira eticamente mais apropriada para se obter conhecimento, testar e renovar conceitos ou contestar teorias e tratamentos em uso. Os benefícios resultantes da pesquisa clínica são extensivos a todas as pessoas.

No entanto, é fundamental que a pesquisa clínica seja desenvolvida de forma a garantir a acurácia e qualidade dos dados, bem como a sua integridade, confiabilidade e reprodubilidade, assegurando, sobretudo, a segurança dos sujeitos envolvidos.

Para que isto ocorra, foram criadas diretrizes, que são seguidas pela maioria dos países. A responsabilidade pela execução e controle dos ensaios clínicos é de todos os que dela participam, direta ou indiretamente, e deve ser conduzida dentro dos métodos científicos e seguindo as normas e regulamentos vigentes. O treinamento / desenvolvimento de todas as pessoas responsáveis pela análise e execução da pesquisa clínica é fator indispensável à proteção dos sujeitos da pesquisa. A inclusão definitiva e destacada do Brasil neste rico cenário científico dependerá de nossa capacidade reflexiva e gerencial, de modo a se criar o ambiente fértil necessário a qualquer desenvolvimento.

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Nota da Redação: artigo científico originalmente publicado na Revista da Socerj volume 16 n.4, out/nov/dez 2003.
Autorizada pelos autores a republicação em www.medcenter.com